As novas mutações de um tropicalista
Em outubro de 1967, aos 16 anos de idade, Sérgio Dias subiu ao palco do III Festival da Música Popular Brasileira, em São Paulo, para participar de uma das noites mais históricas da cultura nacional em meio à ditadura militar. Ao lado de seu irmão Arnaldo Baptista e de Rita Lee, comandou os arranjos de guitarra d’Os Mutantes que causaram furor na apresentação de “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil. A música, junto com “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, tinha o selo de um manifesto: sob vaias e aplausos, nascia a Tropicália.
Hoje, aos 50 anos do movimento, Sérgio não tirou os pés do palco – embora os tenha tirado do Brasil, para alternar residência entre Las Vegas e Nevers, na França. O músico, agora com 66 anos, está em turnê com Os Mutantes em nova formação e retorna ao Brasil em novembro para se apresentar em festivais de música em São Paulo e Rio Grande do Sul. Em entrevista exclusiva por telefone ao Mojique, Sérgio revela que a banda está em processo de composição de um novo álbum e que ele acaba de concluir um disco em parceria com a artista inglesa Carly Bryant. O álbum experimental, chamado “Colour”, ainda não tem previsão de lançamento, mas deverá ser o foco de uma pequena turnê entremeada com a principal, do grupo tropicalista.
“Uma das razões pelas quais estamos vivos até hoje é que vivemos no momento”, afirma Sérgio, ao relembrar o movimento antropofágico que inseriu Os Mutantes na cena musical brasileira e que foi alvo de críticas políticas devido ao uso da guitarra elétrica. “Por mais que quisessem nos botar para baixo, dizendo que “são só uns ‘merdinhas’ tocando guitarra”, eles tiveram que engolir a gente de uma maneira que não conseguiam conceber.”
Qual é o legado da Tropicália no Brasil de hoje?
Estou na estrada sem parar, então não tenho tido possibilidade de ouvir a música que está acontecendo no Brasil. A gente está tocando no mundo inteiro há nove anos, e isso é resultado do trabalho que a gente fez. Mas eu acho que a música no Brasil, atualmente, está em uma situação muito ruim. Como não existem mais as companhias e a possibilidade de se ter um mercado de música, não sobrou muita coisa. Tem os indies, os underground – igual nós fomos. E para um músico sobreviver no Brasil não é fácil. Ou ele consegue tocar no SESC ou faz um disco independente.
Por que você acha que Os Mutantes têm uma recepção tão boa no exterior?
Eu acho que a nossa música sempre foi muito boa. Eu compunha músicas naquela época e achava que estava fazendo rock’n’roll igual o do mundo inteiro. Eu escuto hoje e não tem nada a ver. Os Mutantes são uma coisa completamente única. Não veio com receita, não veio com influências. Aliás, veio para influenciar. Foi mais ou menos como os Beatles, cada disco novo era uma coisa completamente diferente. É uma coisa muito inédita ainda hoje.
Você tinha apenas 16 anos quando a Tropicália surgiu, em 1967. A integração dos Mutantes ao movimento se deu de forma consciente?
Eu acho que ninguém esperava nada do que aconteceu. A gente encontrou o Gil em uma gravação da Nana Caymmi em que o Chiquinho de Moraes nos levou. Acho que foi uma ação para que ele visse a gente. O Gil foi à minha casa, tocou “Domingo no Parque”, e eu estava com certo preconceito na época. Pensei: “puta merda, lá vem aquele cara tocar samba aqui. Não é a nossa”. Ele tocou e eu adorei, achei fantástica. A nossa musicalidade casou na hora e imediatamente começamos a trabalhar.
Você ainda se considera um tropicalista?
Bem, eu moro em Las Vegas. Não tem lugar mais tropicalista do que esse (risos). Cada quarteirão é um pedaço do mundo, uma mistura completa. É a coisa mais bizarra que existe. Eu também estou morando aqui em Nevers, na França, e é um lugar maravilhoso. Meu apartamento tem 300 anos de idade, é um barato.
Os Mutantes foram alçados à fama durante uma época muito polarizada na cultura, e em 1967 foi realizada a “Passeata Contra a Guitarra Elétrica”. Houve algum embate direto com vocês por conta disso?
Eles nos xingavam. Que tal a plateia de “É Proibido Proibir” jogando cadeiras na gente? Isso é pior do que crítica. A gente não estava nem aí para essa turma. Nós fazíamos o que sabíamos que era bom. Por mais que quisessem nos botar para baixo, dizendo que “são só uns ‘merdinhas’ tocando guitarra”, eles tiveram que engolir a gente de uma maneira que não conseguiam conceber. O nível técnico e os arranjos de “Caminhante Noturno” arrebentaram a cabeça deles. E a gente sacaneava eles de tudo quanto era jeito. Uma vez estávamos tocando com o Edu Lobo em Portugal, representando o Brasil no Teatro Villaret, e ele começou a falar mal da gente nos jornais de lá. A gente fazia o som para ele, botava tecnologia e microfone, e ele falando mal da guitarra elétrica. “Ah é? Legal”. Tiramos o som original, desligamos o fio do Canon [microfone] e deixamos ele tocar sem a ajuda da nossa tecnologia. A gente se vingava.
Havia uma questão política inerente...
Tinha muita babaquice, eram muito retrógrados. É muito difícil uma geração ter que se desenvolver para a próxima, e eles não tinham esse jogo de cintura. Uma das razões pelas quais estamos vivos até hoje é que vivemos no momento. Não estou pensando n’Os Mutantes de 1968; eu penso no agora e no futuro. Os discos novos que lançamos não têm nada a ver com o nosso passado e estão sendo maravilhosamente aceitos.
"Os caras gritaram 'Fora Temer' no meu show e eu disse 'escuta, você não acha que tá na hora de mudar isso? Bota o seu na reta'. Eu acho que estão um pouco ingênuos demais."
Existia teor político nos primeiros discos d’Os Mutantes?
Tinha que ter de qualquer maneira, uma vez que éramos censurados. Nós passamos a botar barulho em cima das palavras que censuravam. Meu pai foi preso em 1964 e ficou um mês no quartel porque trabalhava com o Ademar de Barros. Ele escrevia os discursos dele, e provavelmente queriam tirar coisas do meu pai a respeito disso. Foi difícil, muitas vezes éramos ameaçados. Eles já tinham um plano da Aeronáutica para invadir o quartel do Exército e tirar meu pai de lá. O Ademar era muito ligado à Aeronáutica, era aviador e tinha um hangar cheio de aviões lá no Campo de Marte. Ia ser uma merda.
Você acha que estamos vivendo hoje um período semelhante à década de 60?
Eu lancei um disco chamado “Estação da Luz” (2001), e tudo que eu pensava politicamente está lá. Não adiantou porra nenhuma. O brasileiro não tem tutano para lutar pelo que acredita, é uma grande pena. Nas manifestações tinha meia dúzia de gatos pingados. O brasileiro é muito bundão nessa questão. Os caras gritaram “Fora Temer” no meu show e eu disse “escuta, você não acha que tá na hora de mudar isso? Bota o seu na reta.” Eu acho que estão um pouco ingênuos demais.
O que você tem achado da reunião de artistas na casa do Caetano Veloso?
Eu não estou sabendo disso, sei que ele apareceu no ‘’342’’ [movimento “342 Agora”, que se mobilizou pela obtenção dos 342 votos necessários à aceitação,na Câmara, da denúncia de corrupção passiva contra o presidente Michel Temer]. Não sei se vai dar certo. Essa história do Temer botar 10 mil homens do Exército no Rio de Janeiro, isso é uma ocupação da cidade. Ele está pronto pra tomar a cidade.
Os Mutantes têm planos para um novo álbum?
Estamos começando a gravar um novo disco. Ainda está em fase de composição. Passamos 25 dias em Las Vegas e gravamos algumas coisas, mas precisamos de muitas músicas para poder escolher e definir o que é o disco. Isso tem que nascer por si.
Houve alguma conversa com os demais artistas da Tropicália sobre uma possível reunião pelos 50 anos do movimento?
Seria algo muito interessante de fazer, mas ninguém nos procurou.
Vocês, por conta própria, pretendem celebrar a data?
Mais do que estamos fazendo? Nós somos os representantes maiores do tropicalismo no mundo inteiro. Eu terminei recentemente um novo disco solo com a Carly Bryant. O nome é “Colour”. É um trabalho lindíssimo. A gente se juntou, gravou e ela entrou para Os Mutantes também. Vai ser uma adição maravilhosa.
Quando será lançado o novo álbum?
Ele acabou de ficar pronto, são 12 músicas. Está mixado, mas não foi nem masterizado ainda. Agora vamos avaliar se lançamos de forma independente ou se vamos usar um selo.
Quem toca o quê no disco?
Estou tocando um monte de coisas. A Carly toca violão, eu toco violão; ela toca piano, eu toco piano. Também toquei órgão, baixo e guitarra. Fizemos os vocais, usamos sintetizador e a bateria eu programei. A gente se permitiu tudo que eu não me permito fazer com Os Mutantes. Fizemos o diabo a quatro.
Quais as influências por trás do novo trabalho? O disco tende mais ao rock progressivo ou às baladas psicodélicas?
Essa coisa de progressivo ou psicodélico nasceu depois de mim. Na minha época, tudo era rock’n’roll. Não tinha o nome “progressivo” quando Gentle Giant ou Yes surgiram. Isso é uma coisa que inventaram para poderem botar na prateleira. Para mim Elvis e Yes são tudo a mesma coisa. Se está quebrando tudo, é rock.
Os shows terão banda de apoio ou serão só vocês dois?
Acho que seremos só nós dois. Vamos usar computador e isso tudo que não usamos com Os Mutantes. Vai ser divertido, talvez eu toque bateria. Estamos vendo se conseguimos fazer uma pequena turnê no Brasil, entremeada com a d’Os Mutantes. Isso vai ser em novembro e dezembro. Nossa agente no Brasil está começando a ver isso, mas estamos totalmente abertos a qualquer pessoa que queira nos ajudar. Afinal, somos uma bandinha que está começando: o Serginho e a Carlynha (risos).
Arte: Amanda Parmegiani