Em Humanz, Gorillaz mira na revolução e acerta no conformismo
O teatro do apocalipse estava mais uma vez montado, no último dia 28 de abril, quando o Gorillaz lançou mundialmente seu novo disco. À beira do centésimo dia de governo Trump, sob a sutil atmosfera de resistência política do mundo artístico, a banda sentava no trono cult destinado àqueles que, em meio à desorientação ideológica que marca este século, ganharam status de profetas. Somando-se sete anos de uma espera órfã – dos fãs e da mídia -, o cenário era ideal. Mas, se, ainda assim, o Gorillaz conseguiu desagradar muita gente com Humanz, passemos logo à conclusão: não estamos lidando com amadores.
No momento em que mais foi aguardada, a banda se retraiu. Abrindo mão do controle e das arquiteturas melódicas que marcaram os discos anteriores, Damon Albarn maquinou um álbum heterogêneo, confuso e fragmentado em pequenas ilhas musicais. O único fio condutor entre as músicas de Humanz é a passagem inevitável do tempo – e, é claro, a sensação de que há um conceito subterrâneo à espreita das canções.
O que talvez seja o mote central do disco. Pintado como uma festa pós-apocalipse – já foram quantos mesmo? –, Humanz é um mar de retalhos individuais carregados à vontade dos convidados. Ao mesmo tempo em que soa raso, construído em visões difusas e repetitivas sobre a obscuridade de uma nova era, o álbum consegue ser radical na própria inconstância; uma ode ao coletivismo nos tempos do fragmento. Não há sentido além da própria experiência humana. É a estaca zero da arte.
Para emular isso, Damon Albarn teve de se tornar figura de bastidor e afrouxou os comandos do ego. A mudança não é vista com bons olhos pela mídia do rock, que ainda enxerga o Gorillaz como um projeto solo pouco ortodoxo, perigosamente próximo de territórios onde não se usam guitarras. Assim sendo, Damon estica a tolerância conservadora longe demais quando se propõe a gravar um disco antimelódico, sem um esboço de carro-chefe para emplacar nas rádios e cantado não por 2D, mas por uma lista tão interminável quanto inconciliável de artistas convidados.
E são eles que coordenam as diferentes fases do álbum, embora Damon emplaque duas músicas bonitas, previsíveis e obedientes ao manual de composição do Gorillaz. É na aridez frenética de Ascension, cantada por Vince Staples, e no realismo pessimista de Let Me Out, com Mavis Staples e Pusha T, que o disco rompe com a inércia por meio de um lirismo direto e cortante. As incertezas diante do futuro e do racismo latente no poder branco dos Estados Unidos se transformam em uma convocação à luta não como escolha, mas como única resolução possível: “você tem que morrer um pouco se quiser viver”, avisa Mavis.
Humanz representa uma evolução admirável e chocante do Gorillaz, ainda que não consiga se sustentar ao longo de vinte músicas e soe excessivamente empenhado em transmitir uma mensagem genérica. O contraste vem em sequência. Em Hallellujah Money, o disco atinge seu ápice: marcada por uma estética vazia e desafinada sob a narração trevosa de Benjamin Clementine, a música instiga e nos faz indagar se Damon Albarn não criou, ciente ou não disso, um novo gênero musical. Logo em seguida, no entanto, o desfecho de We Got the Power aspira a um hino de resistência e acaba soando como uma música de comercial da Coca-Cola.
Ao flutuar pelo universo sem pouso definido, Humanz peca por sua dubiedade. Não se resolve como uma afronta à existência do sistema, mas como um lamento superficial de quem, resignado, não consegue se pensar fora dele. E, sob esse aspecto, não há dúvidas de que o disco é um retrato preciso de nossos desarranjos enquanto civilização. O fato é que o mundo mudou desde Demon Days. Se há doze anos o Gorillaz podia nos prestar certezas e metáforas precisas, hoje a banda provê sentimentos e reações desconexas. Estando todos no mesmo barco, entendemos perfeitamente.