The Flaming Lips retorna à vanguarda mística em Oczy Mlody
Quase quatro anos se passaram desde que os Flaming Lips lançaram seu último álbum de estúdio, em 2013, com uma sobriedade melancólica que deixou para trás os tempos da alegria colorida. Era o estranho The Terror, que, segundo o próprio vocalista da banda, Wayne Coyne, surgiu como uma antítese espontânea à ideia, até então fundamental para o grupo, de que o universo nascera e dependia visceralmente do amor. Se antes até a morte era pintada de arco-íris nas músicas agridoces do Yoshimi Battles the Pink Robots (2005), o mote, agora, era mais sombrio: o que rege a vida são o medo e o peso inescapável da existência.
Chegamos a 2017 e a sensação pouco mudou, à exceção da teatralidade redescoberta e a evocação mística de unicórnios. O novo disco da banda norte-americana, Oczy Mlody, soa como uma continuação natural de seu antecessor, porém liquidificado com as referências alucinadas que permearam os primeiros álbuns lançados pelo grupo nesse novo século. Fala-se de amor, seres da floresta e legalização de drogas com a habilidade de quem sempre andou, firme, na linha tênue entre a alienação e a vanguarda.
Mas que não sejam confundidos com hippies. Os hippies de hoje são outros; deixaram de viver à parte da sociedade para integrar uma massa artística reprodutora, que pensa combater o sistema com as ferramentas caricaturais que o próprio sistema provê a elas. Os Flaming Lips não são hippies ou saudosistas, embora flertem com a estética paz e amor. Eles são impactantes, progressivos e fundamentalmente inconstantes.
A julgar pelos singles, que começaram a ser lançados no final do ano passado, o Oczy Mlody parecia um produto tão desconexo quanto os projetos paralelos da banda (turnê com Miley Cyrus, gravação de um cover desconstruído do Sgt. Pepper inteiro, para citar apenas alguns). A própria concepção do álbum, inclusive, tendeu ao aleatório, tendo como ponto de partida um livro em polonês adquirido por Coyne em um sebo.
O disco, no entanto, como boa obra do progressivo, é construído nas significações conjuntas e não se entrega fácil.
“O Steven (Drozd, guitarrista da banda) achou esse grupo de palavras em um livro de bolso em polonês que nós tínhamos, e acho que para ele soou como uma droga que vão fazer no futuro ou algo assim. No fim das contas, essa pequena frase ("oczy mlody") significava “olhos dos jovens”, o que nós gostamos muito. Você sempre espera que um pouco da identidade aconteça por conta própria”, afirmou Coyne, em entrevista à Billboard.
Antecedido pelo instrumental que leva o nome do disco, o single How?? parece se transformar e, lembrando as melhores partes do The Terror (2013), introduz o álbum com elegância instrumental e violência. Remete, especificamente, à música Try to Explain ; ambas têm em si a força e a melodia necessárias para tecer uma canção pop, mas optam pelo caminho alternativo.
As letras e palavras de ordem, já durante as três primeiras músicas, conseguem construir uma estranha atmosfera realística por entre os delírios, como se a vida fosse vista de fora sob um filtro místico e mundano em transformação. As viagens têm os pés no chão; em There Should be Unicorns, o músico Reggie Watts narra um fluxo de consciência absurdo que concilia o desejo de uma experiência transcendental com a visão de policiais mal pagos e corruptíveis. Não seria estranho se a música fosse assinada pelo Gorillaz.
Embora propicie alívios melódicos, como a balada Sunrise (Eyes of the Young) e o bonito single Castle (deixo o clipe logo abaixo), o disco peca pelo excesso nas faixas Do Glowy e Listening to the Frogs with Demon Eyes. As palavras agressivas não se compatibilizam totalmente com as construções melódicas uniformes, e a sensação é de que falta certa agressividade na bateria, como se construiu com maestria e impacto no Embryonic (2009), que talvez seja o melhor disco da banda até hoje.
A guitarra psicodélica de Galaxy I Sink recompõe a organicidade instrumental necessária ao álbum, com uma construção incerta e um lirismo existencial que parece assumir novas formas a cada novo disco dos Flaming Lips. É essa luta constante entre o humano e a busca por extremos artísticos que assegura a virtuosidade da banda, alheia a quaisquer imposições de gênero musical ou estilo conforme a época.
Em meio a essa guerra de significações, o álbum atinge seu ápice com a sofisticada One Night While Hunting for Faeries and Witches and Wizards to Kill, uma canção mitológica com um instrumental que, sustentado por um baixo imponente e conduzido pela melodia da voz de Coyne, carrega em si o espírito do disco.
Além da capacidade única de suscitar sensações conflitantes, com melodias abertas do pop e composições lúgubres, os Flaming Lips conseguem hoje expandir as percepções acerca do peso da existência enquanto algo que está além do homem. Assim como os trabalhos recentes do grupo, Oczy Mlody é centrado em grande parte nas figuras da natureza e do imaginário, estendendo à concepção de universo os sentimentos de medo, bem e mal. A ideia é de a experiência humana de vida, embora particular, é única e onipresente.
Escolhida para encerrar o disco com uma pretensão de final feliz, a música We a Famly, que conta com participação da Miley Cyrus, parece deslocada do restante do álbum. A canção que a antecede, por outro lado, Almost Home (Blisko Domu), carrega em si um senso de conclusão caótico que encerra a grande digressão existencial que compõe o esqueleto do álbum. É nela que está o melhor lirismo provocativo, em trechos que abordam o âmago da raiva como “Did your mind invent your mind?” e “You fear revenge from those you’ve hurt”.
À exceção de trechos brutos, Oczy Mlody é um disco consistente e vigoroso, que parece constituir, com proporções expandidas e metáforas universais, uma continuação espontânea de seu antecessor. Seco e espinhoso, The Terror encontra neste novo álbum seu complemento natural, em uma versão mais progressiva da vanguarda dos Flaming Lips, que há tempos perturba os limites de um gênero tão autorreferencial e mercadológico quanto o rock.