O apelo do 'Coachella way of life'
Esta é uma tradução livre do texto "The Appeal of the Coachella Way of Life", da jornalista Carrie Battan, publicado na versão digital da revista estadunidense The New Yorker no dia 15 de abril de 2017.
Eu nunca fui ao Coachella, mas ainda assim ele me cerca a todo momento. Coachella é um festival de música – e, agora, um festival enormemente lucrativo -, mas é também uma estética definida, um para-raios de aspirações, um modo de ser.
O Coachella inaugural aconteceu em 1999, mas suas origens remetem a outros tempos. Em 1993, o Pearl Jam, em protesto contra o que entendeu serem sobretaxas exorbitantes da Ticketmaster – lembra de quando as sobretaxas eram raras a ponto de causar ira? –, realizou um show em um local não controlado pela Ticketmaster: o Empire Polo Club, em Indio, California. Na época, aquele espaço aberto no deserto nunca havia recebido um show de rock, e esse evento serviu como uma espécie de teste e de precursor para os futuros eventos que tomariam forma lá. O Coachella estaria entre eles. Fundado por um homem chamado Paul Tollett e sua empresa de eventos, a Goldenvoice, o primeiro Coachella atraiu uma multidão de cerca de vinte mil pessoas em seus dois dias. A Goldenvoice perdeu aproximadamente um milhão de dólares no primeiro ano do festival, e se embrenhou no ano seguinte. O esforço não se prolongou muito – o festival retornou em 2001, e em 2004 os ingressos se esgotaram pela primeira vez.
Por volta de 2012, o Coachella havia se tornado tão popular que a Goldenvoice programou um segundo final de semana para o festival (o mesmo line-up se apresenta por duas semanas consecutivas). No ano passado, o evento bateu seu próprio recorde de público, chegando à beira dos duzentos mil ingressos por um total recorde de 84 milhões de dólares. O festival deste ano, que acontece neste e no próximo fim de semana, anunciou que seus ingressos haviam se esgotado uma hora após o início das vendas. Esqueça as sobretaxas irritantes da Ticketmaster – ingressos genéricos foram vendidos por 399 dólares; passes VIP, por 899 dólares. Se esses preços não revelam o alvo demográfico do Coachella de forma clara o suficiente, talvez isso o faça: algumas semanas atrás eu recebi um release da startup JetSmarter, anunciando seu primeiríssimo serviço de transporte por meio de jato particular ao Coachella, saindo de Los Angeles e das Bermudas. O passeio de jato particular existe para os frequentadores do festival à procura de “uma forma rápida e conveniente de se direcionar para o vale este ano”, dizia, despojadamente, a mensagem. O site EliteDaily, um playground online para a elite que assim se intitula orgulhosamente, postou recentemente um artigo em que oferece aos seus leitores um pouco de sabedoria à la Coachella: “Saiba como acampar no Coachella como um verdadeiro patrão” (Primeiro passo: “Fique em um lugar cool”).
Os festivais mais conhecidos e de maior escala usualmente se esforçam para idealizar algo, mesmo que esse algo não seja nada além da devassidão. Woodstock tinha paz e amor (e depois, em sua reencarnação de 1999, teve fogo e fúria). Lilith Fair teve uma inclusão emotiva e solidariedade feminista. Burning Man, objeto de muitos debates e zombarias, tem um espírito autodeclarado de “autossuficiência radical” e, mais recentemente, de uma tecno-utopia. Mardi Gras tem suas tradições de bebidas, colares e de Big Easy¹; Electric Daisy Carnival, seus bastões luminosos e estudantes em recesso. O Coachella, por outro lado, é um espécime muito mais vago e difuso – um esforço estetizado por um “hippiezismo” do deserto, divorciado de qualquer ideologia. Visto de forma coletiva, mesmo os seus line-ups formam um grupo genérico e apolítico. Nos primeiros anos, as atrações principais do Coachella incluíram Red Hot Chili Peppers, Jane’s Addiction e Oasis. O festival era um monumento ao período pós-grunge, quando o hard-rock ainda detinha influência sobre o mainstream. Livre das constrições de uma identidade firme, o Coachella evoluiu conforme as tendências da música. Eventualmente, cresceu de forma a incorporar mais performances de hip-hop e dança (Jaz Z, Muse e Gorillaz foram as atrações principais em 2010). Não há exatamente uma linha a ser desenhada por entre os line-ups, mas o Coachella sempre manteve uma espécie de arrojamento agnóstico, anunciando atrações leve e dubitavelmente marginalizadas, na medida certa para parecer tenuemente contracultural, e patrocinando apresentações diversas o suficiente para satisfazer o gosto de qualquer pessoa.
Não que as performances sejam a atração principal. Devido à sua proximidade de Los Angeles e seu estigma descompromissado de hype, o Coachella se tornou palco para a peregrinação de famosos, proporcionando um ar de glamour não comumente associado ao calor extremo, à poeira e ao desconforto físico. O Coachella é o único festival de música em que você poderá ter uma chance de ver a Rihanna, sem ser anunciada como atração, fumar um baseado enquanto senta nos ombros de um dos seus guardas pessoais. Ou Kate Bosworth e Selena Gomez perambulando entre civis, trajando vestidos floridos; ou Jared Leto em um jeans apertado com listras de zebra. O festival é, sem dúvidas, um espaço para se ver música ao vivo, mas é também lugar para testemunhar um desfile ritualizado de pessoas bonitas dando voz a suas boemias internas durante alguns dias. Vendo-se à distância, parece menos um refúgio de espíritos livres do que uma passarela de pessoas que decidiram que o “livre-espiritismo” lhes cai bem. Em outras palavras, é um redemoinho de potencial comercial. Tanto potencial comercial que a Goldenvoice lançou em Nova York uma nova franquia do festival chamado Panorama, a ser realizado em Randall’s Island, em julho.
Se o Coachella realmente tem uma marca de identidade, é sua vestimenta. Para mulheres, trata-se de um uniforme altamente específico e zombado de shorts jeans rasgados, vestidos compridos e adereços culturalmente insensíveis na cabeça. Esses significadores estéticos da boemia se tornaram tão alinhados com o festival que varejistas agora usam “Coachella” na descrição de produtos para provocar impulsos de compra. Uma busca por “Coachella” no ASOS, um site popular de comércio online, alavanca uma coleção de vestuários com franjas. A H&M (uma patrocinadora do festival) lançou sua própria “Coleção Coachella” – direcionada da mesma forma para frequentadores e não frequentadores –, também com muitas peças de franja. No Etsy, uma busca por “Coachella” traz à tona mais de vinte e quatro mil resultados, cujas páginas poderiam servir como sátira de um código de vestimenta do festival: jeans rasgados, braceletes chacoalhantes para os tornozelos, cropped de crochet, óculos de aviador com mini-margaridas de plástico afixadas no aro, pochetes personalizadas e um excesso de coroas de flores. Devido em grande parte ao Coachella, coroas de flores se tornaram tão onipresentes que até Courtney Love escreveu contra elas de maneira geral: “Coroas de flores já deram. Fodam-se as coroas de flores”, disse ela à Style.com em 2014. Mas o público do Coachella parece determinado. Existe até um filtro de coroa de flores no Snapchat.
Certamente, em algum momento, anos atrás, os frequentadores do Coachella devem ter se empenhado por capturar algo que lhes era sedutor – talvez o idealismo de Woodstock, ou a promessa da liberdade em um deserto remoto. Esses desejos, ao que parece, são expressos em sua maior parte por escolhas de guarda-roupa, designadas a se aproximar ao máximo de uma mentalidade infantil e florida. Agora, essas aproximações são tão distintas entre si que os frequentadores do Coachella – e pessoas jovens, em sua maioria com dinheiro disponível – parecem desejar nada além da sensibilidade própria do festival. O que soa profundamente tolo, sim. E, ainda assim, seria uma perda de tempo se queixar do Coachella como sendo uma representação endinheirada e oca da contracultura (de fato, a corrupção da contracultura é um barco que zarpou há muito tempo). Na verdade, em uma época em que somos encorajados a imputar ambições de transformação do mundo em absolutamente todas as coisas mundanas que fazemos, os desejos do Coachella são cordialmente puros, simplistas e autocontidos – o que pode ser até um pouco radical.
¹ Apelido dado à cidade de Nova Orleans