Spotify e o anacronismo da indústria musical
A indústria da música trocou de pele mais uma vez. Agora não mais responde pela caricatura do velho e ranzinza dono de uma mega gravadora; atende pelo nome de Daniel Ek, um simpático jovem da geração de empreendedores inventivos do novo século. Aos 33 anos, o CEO do Spotify foi considerado o nome mais poderoso do mundo da música no ranking anual da Billboard, divulgado no início de fevereiro, dentre uma lista de cem personalidades influentes em 2017.
O ranking, é claro, vale apenas pelo valor simbólico. O mundo inteiro presenciou essa mudança de curso ao longo dos últimos vinte anos, desde a decadência paulatina do mercado fonográfico à afloração revolucionária – ainda que desorganizada – do livre download na internet.
A indústria, porém, experimenta hoje uma transformação completa – e vem tomando proporções colossais ao avançar sobre a terra abandonada do mercado musical. Com uma roupagem moderna, investe seu poder econômico sobre o controle da informação e o combate à pirataria, sua inimiga anárquica. Se antes a máquina era movida a vendas, em uma grande manufatura voltada à fabricação massiva de discos, hoje ela vive da especulação e da comercialização do acesso à música e à informação como um todo.
A influência de Daniel Ek é, de fato, justificada em números. No último dia 2 de março, o Spotify anunciou ter atingido a marca global de 50 milhões de usuários pagantes. O comunicado anterior havia sido feito em setembro, quando a empresa comemorou um total de 40 milhões, frente a meros 30 milhões no início de 2016. Avalizado no médio prazo pelo fomento à cultura e à indústria fonográfica, que há muito não se deparava com cifras tão altas, o Spotify tem sido consagrado como uma salvação sustentável à lógica do mercado artístico. Os aplicativos de streaming, no entanto, representam o mesmo negócio de sempre, que briga pelo lucro milionário de intermediar o consumo da arte e fatura em desproporção com os valores que paga a seus artistas contratados.
Sob a fachada de um serviço de bem público, uma nova forma de monopólio, digitalizada e atrativa, espraia suas raízes. Na prática, o streaming suprime, em benefício próprio, os meios que permitem a troca livre de arquivos e informações. Fazendo uso das ferramentas do novo capitalismo global, a indústria musical retomou as rédeas da veiculação da arte e inibiu uma mudança em potencial, que ensaiou se consolidar – e falhou em se organizar de forma viável - com a liberdade da internet.
A mudança se deu de forma sutil no decorrer desta década. Incapaz de combater na marra o fluxo de downloads gratuitos e a pirataria que predominam nos meios virtuais desde os tempos primitivos do Limewire e do Emule, a indústria percebeu que mais valia vencer o inimigo no próprio jogo. Não podendo derrotar a internet, uniu-se a ela. E a fórmula funcionou perfeitamente.
Favorecido pela enorme demanda por música de fácil acesso e pelo interesse desesperado das gravadoras em lucrar sobre acordos de royalties, o Spotify cresceu exponencialmente - já contava com 100 milhões de usuários em junho de 2016. Trata-se, é claro, de apenas uma fatia do imenso bolo que abrange plataformas irmãs como Deezer, Pandora, Rara, Grooveshark e muitas outras. Aqui vão alguns números, divulgados ao longo do ano passado pela Pro-Musica Brasil Produtores Fonográficos Associados e pela IFPI (International Federation of the Phonographic Industry):
• Entre 2015 e 2016, os serviços de streaming cresceram 121% no Brasil e 80% na América Latina, que há cinco anos é o mercado global de maior crescimento.
• No final de 2015, as receitas geradas por streaming no mundo já somavam US$ 2,9 bilhões, quadruplicando o valor registrado em 2010.
• No mesmo período, o streaming já respondia por 43% das receitas geradas digitalmente, contra 45% até então representados pelos downloads.
• Nos primeiros meses de 2016, 68 milhões de pessoas pagavam por serviços de streaming. Em 2010, eram apenas 8 milhões.
A situação é fértil. De um lado, há um enorme público ávido por meios simples e portáteis de ouvir música com qualidade, em largas quantidades e sem riscos – benefícios inegáveis do streaming. De outro, tem-se a docilidade ideal dos artistas - se contratados por grandes gravadoras, não negam os ganhos a mais que os royalties de reprodução podem gerar, e, se independentes, não se permitem o luxo de recusar os centavos de direitos autorais que os serviços de streaming pagam sistematicamente. E não é exagero falar em centavos.
Um dos artigos mais elucidativos que se encontra na internet acerca dessa questão se chama “Making Cents”, e foi escrito em 2012 pelo músico Damon Krukowski, da banda independente Galaxy 500. Tomando seu próprio caso como exemplo, o artista diz ter recebido um dólar e cinco centavos por 5.960 reproduções que uma música de seu grupo teve no Spotify. O valor, naturalmente, se dividia ainda pelos três compositores, resultando em trinta e cinco centavos para cada um. No aplicativo Pandora, a cifra caía ainda para vinte e um centavos.
Segundo os cálculos de Krukowski, com base nos valores pagos na época, a banda precisaria conseguir 312 mil reproduções no Pandora para atingir o lucro equivalente ao que teriam com a venda de apenas um disco – literalmente um.
“Não é que eu seja nostálgico pelos velhos tempos – nós também não fomos pagos pelo nosso primeiro álbum. (...) Mas as formas pelas quais os músicos são prejudicados mudaram qualitativamente, de fraudes individualizadas a fraudes sistêmicas”, diz o músico, que conclui: “De fato, a música em si parece ser irrelevante para esses negócios – ela é apenas outra forma de informação, igual a qualquer uma que possa nos atrair para clicar em um link ou em um botão de ‘comprar” em uma bolsa de valores”.
O que antes era território indefinido passa a ser ocupado por forças irrefreáveis do mercado, impulsionadas por investimentos especulativos e respaldadas, em uma relação de mutualismo, pela estrutura remanescente da velha indústria. A começar pelo mercado publicitário, que constitui atualmente um dos principais pilares financeiros dos serviços de streaming. A catalogação da informação de clientes em um enorme centro único constitui um prato cheio para anunciantes, que podem planejar suas inserções de forma segmentada. O Spotify, em seu próprio site, destaca os benefícios do “targeting de conteúdo”: as empresas interessadas podem firmar parcerias para calcular sua propaganda segundo variações de gênero, idade e preferências musicais dos seus potenciais clientes.
A expansão de um novo monopólio também é favorecida, nesse processo, pela conveniente bandeira do combate à pirataria, que conta com um unânime apoio de forças políticas. Em julho do ano passado, um estudo divulgado pela agência Intellectual Property Office (IPO), na Inglaterra, atribuiu a plataformas como Spotify e Netflix uma queda recorde de 3% no número de usuários que acessavam conteúdos de pirataria. De 18% em 2015, passaram a 15% do total de usuários em 2016, o percentual mais baixo já registrado na série histórica.
Ao mesmo tempo, porém, as plataformas de streaming afetam o comércio online de músicas em sites como Amazon e iTunes. Cada 137 reproduções em streaming equivalem a uma venda a menos na internet, de acordo com uma análise feita em 2015 pelo Instituto de Estudos Tecnológicos Prospectivos (ITP). A pesquisa conclui que, em valores práticos, os efeitos positivos e negativos do streaming se neutralizam.
Nas palavras de Thom Yorke, vocalista do Radiohead e um dos principais artistas contrários aos serviços de streaming, o modelo de negócios capitaneado pelo Spotify representa “o último peido desesperado de um corpo moribundo”. A banda Atoms for Peace, da qual Yorke também faz parte, chegou a retirar todas as suas músicas das principais plataformas de streaming em 2013.
O Radiohead, por sua vez, é protagonista de um dos casos mais emblemáticos de contestação ao sistema nos últimos anos. Em 2007, o grupo dispensou o aparato industrial de seus intermediários e lançou por conta própria, para download na internet, seu sétimo álbum de estúdio, o In Rainbows. As pessoas poderiam pagar quanto quisessem pelo disco. O resultado foi um total de três milhões de cópias vendidas e um arrepio gélido na espinha do mercado.
No longo prazo, é certo que não há ainda uma alternativa sólida e viável para divorciar completamente a produção artística da máquina industrial. Mas não se trata de idealismo o esforço, ainda que sem forma definida, de não submeter a música às vontades do mercado financeiro.
É certo também que as vantagens práticas dos serviços de streaming, no contexto atual de transição da lógica de mercado para a internet, são inquestionáveis. Essas plataformas facilitam a divulgação de artistas independentes, tornam a música mais acessível ao grande público e remuneram músicos com royalties que, embora pequenos e gerados por cálculos não divulgados, eles não receberiam da pirataria online.
Na prática, porém, trata-se de um erro avalizado por um erro maior. O convencimento é simples quando a situação se reduz à ideia de que “antes era pior”. O fato é que, no curso da história, o Spotify e os demais canais de streaming representam um passo para trás diante do inevitável. São, em essência, o último esforço corporativo para manter um controle estrutural da informação, o que no ramo da comunicação se conhece pelo termo gatekeeping.
Os novos modelos que nascerão com a ruptura entre a música e a indústria ainda são nebulosos neste 2017 de Daniel Ek. É possível que venha a se extinguir, por completo, a função de intermédio entre os artistas e seus públicos. É provável que as relações de consumo e remuneração venham a se desenvolver sobre estruturas mais democráticas, e as noções de preço e valor da arte sejam viradas de cabeça para baixo ao longo dos anos que estão por vir. É inevitável, acima de tudo, a evolução.
Sob a ótica dos recortes largos da história, vivemos hoje, enquanto sociedade, uma época de estranha transição: temos acesso às tecnologias de comunicação e compartilhamento de informação, mas nos submetemos a estruturas econômicas que limitam esse potencial para tornarem justificável a própria existência - e renderem lucros aos acionistas ao final do trimestre. A expansão dos serviços de streaming já se consolida como a marca fundamental de uma década de anacronismos no mundo da música.