Qual Paul foi melhor: o original ou o sósia?
Poucas horas antes do sol nascer, na nona madrugada de novembro de 1966, o primeiro Paul McCartney morreu. Seu Aston Martin não tomou conhecimento do sinal fechado e avançou sobre um cruzamento nos arredores do centro de Londres, explodindo contra outro carro em uma colisão sem sobreviventes. A cena era dramática e o corpo, irreconhecível.
O segundo Paul nasceu então dos bastidores de desespero e ambição dos Beatles restantes, que comandaram uma mega operação para abafar o caso e tocar a vida com uma cópia de seu baixista arrumado às pressas. O jovem rapaz, que já havia vencido um concurso de sósias do Paul e atuado como dublê do próprio nas gravações do filme A Hard Day’s Night, ganhou um bigode para amenizar as diferenças de traços que poderiam ser percebidas por olhares atentos. Atribuindo a mudança a uma nova fase psicodélica, John, George e Ringo seguiram o estilo. E as turnês, que àquela altura já capengavam, foram abolidas sob pretextos convenientes.
Os disfarces, é claro, não sobreviveram às nítidas denúncias estampadas nos discos vindouros e reveladas por detetives de mensagens subliminares. Colocado sob os holofotes à força das circunstâncias, o segundo Paul era um estranho no ninho mais visado do planeta – e pouco tardou para que isso chegasse a conhecimento público. Ainda assim, porém, sob o peso da encenação diária, seu legado enquanto beatle tomou proporções colossais.
Tendo se passado quase meio século desde o término da banda, os fãs mais entusiasmados ainda tomam lado e se engalfinham por uma rivalidade entre Paul e Lennon. Bobagem de fachada. Silenciosa, a verdadeira dúvida ainda paira nos ares da história. Afinal, qual Paul foi melhor: o original ou o sósia?
O fato é que a morte e o nascimento de Paul McCartney traçam uma linha divisória simétrica e reveladora bem no meio da discografia dos Beatles. Até o trágico mês de novembro, a banda somava um currículo afortunado de sete discos, em uma escalada que já assegurava ao grupo uma das carreiras mais bem sucedidas da história da música. Dali em diante viriam outros seis, que de certo não foram pouca coisa. De tão acirrada, a dualidade beira a matemática, mas a resposta não há de vir pelos números.
Sem ambos – e aqui se permite um clichê –, os Beatles não seriam o que foram. O primeiro Paul, quando não estava sendo deportado da Alemanha por atear fogo em uma camisinha, escrevia canções românticas que viriam a se tornar o cartão de visitas da banda para as próximas gerações – All My Loving, And I Love Her, P.S I Love You, para citar alguns dos hits monotemáticos. Claramente inspiradas nos precursores do estilo, como Chuck Berry e Roy Orbison, as músicas pareciam já existir em um subconsciente coletivo naquele início da década de 60, até que os Beatles as colocaram no papel. A sensação sempre foi, na mesma medida, de fascínio e familiaridade.
Ao mesmo tempo, à parte da incrível facilidade de compor músicas vendáveis com Lennon, o Paul original foi um dos pioneiros na mudança de tom da música inglesa. Os ares revolucionários da época emergiram no som dos Beatles de maneira natural e começaram a tomar forma em meados de 1965. Enquanto gravavam, já sem vontade, as cenas do filme Help!, os rapazes compunham novas músicas com letras mais derivativas e melodias menos engravatadas – o que, segundo os historiadores beatlenianos, teria resultado de uma aproximação com Bob Dylan e dos primeiros contatos com a maconha. Para Paul, era tempo de migrar dos grandes hits para arranjos folk mais complexos – como é o caso de Michelle e I’m Looking Through You. Assim fez-se, em dezembro daquele ano, o Rubber Soul.
O segundo Paul tem méritos suficientes para sustentar as glórias de três gerações, mas não pode se vangloriar de ter participado da gestação de um novo legado na história do rock. Rubber Soul foi o primeiro álbum dos Beatles a ser pensado como uma obra de arte na íntegra; um recorte coeso e emancipado das expectativas caricaturais que mercado fonográfico tinha em relação à banda. Lado a lado com Lennon em plena escalada criativa e com George em seus primeiros lances de genialidade, o Paul original cravou linhas de baixo notáveis e, assim como faria seu sucessor, assumiu a gerência instrumental dos Beatles.
Àquela altura, a banda já havia se tornado maior do que o mercado que a alimentara. Era acessível a ponto de manter suas vendas na casa dos milhões, e, simultaneamente, assumir as rédeas da contracultura. Do que, afinal, se tratavam as guitarras invertidas e a letra sugestiva de Rain?
Nada mais que um epílogo. Três meses antes de sua morte, o primeiro Paul encerrou seu legado beatle com um supertrunfo: Revolver. Lançado em agosto de 1966, o disco teve um peso tão incalculável quanto o de seu sucessor, que veio à tona dez meses mais tarde, em junho de 1967. A rivalidade entre os Pauls, merecedora de tantas linhas, se condensa em um breve período de pouco menos de um ano.
Nesses dez meses, os Beatles transformaram a música. Inquietante, como uma versão subversiva e madura de Rubber Soul, Revolver consolidou o posto de vanguarda e a sinestesia psicodélica do grupo. Sem dúvidas, um dos álbuns mais importantes da historiografia do rock; simples, seco e diverso como poucos de seus afilhados conseguiram desde então. Revolucionário e inesperado, Sgt.Pepper’s Lonely Hearts Club Band desconstruiu o conceito de disco e performance como um todo, ao mesmo tempo em que permitiu florescer, em uma versão libertária e disforme, o auge das composições Lennon/McCartney.
Esta análise enfrenta, portanto, uma dicotomia: da mesma forma que o Paul original atinge seu ápice à beira da morte, o segundo Paul tem seu apogeu à beira do nascimento. Em uma avaliação cronológica, não se pode dizer que o sósia tenha evoluído ou regredido de maneira evidente – sua carreira de beatle se inicia com Sgt. Pepper’s e chega ao fim com Abbey Road, o último álbum gravado pelos Beatles. Não há de se comparar altos e baixos em uma discografia que não se permite sequer a mais sutil das baixezas.
O segundo Paul se impôs sobre a banda e sobre a memória do primeiro Paul. Por maiores que sejam os feitos do original, as primeiras imagens que remetem ao baixista são do sósia: o homem maduro, sentado ao piano, teclando os acordes de Let it Be e Hey Jude. Afinal, se a voz de Lennon falou mais alto na primeira metade da carreira dos Beatles, foi Paul quem comandou a máquina nos últimos anos daquela década.
A resposta à rivalidade, que não virá pelos números, virá, portanto, pelo capital revolucionário – não me refiro aqui à cabeça de Karl Marx que flutua na capa do Sgt.Pepper’s. A inovação subversiva do primeiro Paul e a habilidade renovadora do segundo são potências de tal modo equivalentes que, à força dos fatos, deveremos nos ater aos detalhes. Mais especificamente, ao calendário.
Dividindo ao meio a discografia dos Beatles, o Sgt.Pepper’s está no cerne da questão e no redemoinho de um tempo misterioso. O fato é que, em uma primeira análise da história beatleaniana, não se poderia afirmar qual dos Pauls foi responsável pela concepção do disco mais icônico da banda. Se as gravações tiveram início no dia 24 de novembro de 1966 – segundo as fontes oficiais -, apenas duas semanas após o trágico acidente, de quem teria sido a ideia insubmissa de criar um pseudônimo grupal, um alter ego revolucionário para o conjunto que superou a fama de Jesus Cristo?
Felizmente para o debate, os Beatles foram a banda mais bem registrada e documentada da história da música. Seus dez anos de carreira foram catalogados detalhadamente, dia após dia, de modo que a resposta consta hoje em um dos principais redutos beatle da internet: a Beatle Bible.
A data é 19 de novembro de 1966. Dez dias após o óbito do Paul original, o Paul sósia estava em um avião, retornando de uma viagem ao Quênia, quando teve a súbita ideia de criar uma banda fictícia. Recém-empossado no cargo de baixista, o jovem rapaz pisou de volta na Inglaterra com o conceito já desenhado em seus pensamentos e deu início às composições com os demais membros da banda. O resto é história.
Por questão de dez dias e um estalo de gênio, o sósia do Paul vence a rivalidade mais acirrada da história do rock.
(Um pequeno adendo: a análise não leva em conta a carreira solo que o Paul sósia viria a desenvolver nas décadas pós-Beatles. Sorte dele.)