A ruptura laranja: duas décadas do álbum mais estranho do Blur
Há exatos vinte anos e onze dias, numa tarde como esta, um fã de Blur chegava em casa com o novo disco da sua banda favorita em mãos, e desconfiava, catorze músicas mais tarde, que talvez tivesse ocorrido um engano com os encartes. Por entre os pensamentos da cabeça do provável adolescente, três ideias matutavam: ou aquilo não era Blur, ou comprara um disco de lados-B estranhos ou a banda tinha perdido por completo seu senso de qualidade.
Mais do que qualidade, a questão ali era coerência. Salvo as diferenças de proporção e estilo, o novo álbum estava para o Blur como o White Album estivera, décadas antes, para os Beatles. Da mesma forma como não foi fácil, em 1968, engolir um álbum duplo de trinta músicas menos ensaiadas que o normal, não havia quem caísse de amores, em 1997, pela crueza e os delírios grunge da banda que até então vinha fazendo sucesso na onda do antiamericanismo.
Mas esperemos que, naquela tarde, o fã confuso tenha colocado o disco para tocar de novo. Isso porque, embora não figure entre os melhores álbuns da banda, o laranja e homônimo Blur talvez seja o ponto mais crucial da discografia do quarteto.
A começar pelo começo. A música de abertura, Beetlebum, é um rock icônico e incontestável, melancólico com uma dureza de John Lennon e carregado pela guitarra primorosa do Graham Coxon. Era uma ruptura. Superando o sarcasmo das crônicas urbanas e dos personagens caricaturalmente britânicos, Damon Albarn escrevia agora em primeira pessoa e cantava suas experiências impotentes e anestesiantes com a heroína. O disco soa, essencialmente, como uma divagação perturbada, vestida de pijamas em uma manhã de domingo.
A mudança drástica era fundamental àquela altura do campeonato: depois de ser alçada aos tabloides e aos grandes estádios com uma pomposa trilogia do britpop, a banda estava desgastada e posta de lado enquanto eclodiam novos submovimentos na Inglaterra. De vanguarda, o rock britânico passava a ser resguardado, cada vez mais, pelos interesses artificiais e megalomaníacos do mercado.
Isolado em si mesmo, o Blur rompeu então as correntes do estilo que havia criado e compôs um álbum tão cru quanto o necessário para ressignificar a arte que faria dali para frente. Nas palavras de Graham Coxon, em uma carta apologética que escreveu a Damon Albarn após uma série de desentendimentos entre os dois, era preciso fazer música para “assustar as pessoas de novo”. Era preciso evoluir (fica a dica, Gallaghers).
Abrindo mão das produções orquestradas e canções que soavam como temas de musicais, a banda se encontrou na improvisação e na simplicidade de arranjos espontâneos, como transparece na faixa Country Sad Ballad Man. “A real organicidade dela, o fato de que o baixo e a guitarra estão totalmente desafinados entre si. Isso me deixa bastante feliz”, afirmou Coxon após o lançamento do disco, em entrevista ao portal Addicted to Noise.
Enquanto o guitarrista ganhava mais espaço para criar – inclusive emplacando sua primeira música em um disco do Blur, a caseira You’re So Great - o lirismo de Damon Albarn se afluía por lados mais confessionais e melancólicos que viriam a tomar uma forma atmosférica no álbum seguinte, o experimental 13. Nessa estranha fase de transição, sob as convulsões de um rock orgânico que se estende até por onze minutos na faixa Essex Dogs, Albarn se expõe de forma visceral e reluz em músicas como a belíssima Strange News From Another Star.
O fato curioso é que, embora não seja palpável como outros discos do grupo, o álbum homônimo foi o que mais impulsionou o Blur no mercado norte-americano, devido principalmente à música Song 2. Composto como uma paródia do movimento grunge ao estilo Nirvana, o single ainda está arquivado nas memórias de uma geração que cantava “woohoo” na abertura do jogo "Fifa: Road to World Cup 98", do saudoso Nintendo 64. Com o passar dos anos e a virada de século, a música passaria a viver por conta própria no hall de clássicos da cultura pop e de covers mais reproduzidos do universo.
Fadado ao papel de coadjuvante, o estranho disco alaranjado é o agente silencioso – porém fundamental à estrutura – da discografia de uma das maiores bandas dos anos 90. Sem alarde e com um brilhantismo sombroso, abriu caminho, vinte anos atrás, para a ruptura mais brutal que estava por vir com seu sucessor e deu vida às estranhas convulsões necessárias do Blur. É uma data a se comemorar.